Crônica - A soldado - Romildo Sant'Anna

A soldado

Romildo Sant’Anna
Romildo Sant’Anna
Com o devido respeito aos varões fardados e que têm por lema a preservação da ordem e segurança pública, homenageio hoje as soldadas. Heresia! - gritarão em legítima defesa os puritanos das normas gramaticais. Não há flexão de gênero para “soldado”, nem se diz “corajosa soldado”, mas é soldado mesmo, inflexível! No caso das mulheres em fardas não se considera a pessoa, mas o cargo ou profissão.
A soberba masculina é musa das insensatezes. Se dizemos o enfermeiro, a enfermeira, o garçom, a garçonete, por que não “a soldada”? Mesmo os nomes comuns de dois gêneros distinguem o feminino pela presença do artigo ou outro determinante. São “aquela estudante”, “essa jornalista”, “umas dentistas”. Porém, às policiais femininas, por que a discriminação? A todo santo mês recebem o minguado soldo e, como todos os soldados de quaisquer patentes, são soldadas. Que segregação é essa, repito, à valorosa e diligente policial?
Carl Jung nos ensina: “Na feminilidade, a alma do mundo. Nela residem nosso potencial afetivo, a espiritualidade, as intuições proféticas, o sonho quimérico de amor e proteção”. Assim, talvez pela natureza e atributos femininos, é raro à dedicada servidora pública gestos de truculência e abusos de poder. Dedicam-se com atitudes compassivas, inspiram confiança, dão arejado toque de refinamento ao batalhão. Sem que se imponham ostensivamente, têm a virtude natural da mulher, trazem implícitos a dedicação ao outro e respeito à sociedade.
As gramáticas se omitem, fingem que “não é comigo”. Os dicionários que, no aquartelado dos conceitos, enfeixam o espírito cultural da nação, registram “soldado” só no masculino. São sinais do machismo encalacrado e, no caso, merecem mesmo a alcunha de “pais dos burros”. Restringem-se ao viril e destemido guerreiro de antanho que recebia soldo. E ignoram as soldadas do presente.
É dever civil tê-las como pessoas sexuadas, mães e companheiras, tratando-as no feminino: A digníssima soldada. Há dez anos, a médica e presidente chilena Michelle Bachelet, batalhando a pacificação do país, confiou a chefia de segurança do palácio La Moneda a uma “carabinera”, quer dizer, uma soldada. Nada mais justo e civilizatório. Aliás, no país de Gabriela Mistral e Neruda, a Guarda Nacional integra-se no meio a meio: soldadas e soldados. Por que no Brasil não se declara paz à razão e sensibilidade?
Gina Lollobrigida observou: “Glamour é quando um homem percebe que uma mulher é uma mulher”. Contudo, deixando prevalecer rudes costumes que nos entortam, lemos gravado na farda: “Soldado Feminino PM Helena”. Dia desses, toquei nesse assunto com uma solícita soldada. Ela franziu o semblante e devolveu-me uma pergunta, entre o acatamento à disciplina militar e sua convicção de cidadã: “Estranho, né?”. E, enigmática como a Mona Lisa, discretamente, sorriu.

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