Artigo - Trabalho Sexual e Marxismo - Amandha Palha
TRABALHO SEXUAL E MARXISMO
Racunho 1: para começo de conversa.*
Racunho 1: para começo de conversa.*
Os debates sobre prostituição e perspectivas políticas para trabalhadoras e trabalhadores do sexo vem sendo frequentemente reduzido à questão da escolha: pode ser um trabalho de livre escolha?; há trabalhadoras do sexo que escolhem de fato essa atividade?; é possível dizer que há escolha profissional, no capitalismo, para os setores mais vulneráveis da classe trabalhadora (como mulher e travestis)?. Ainda que importantes, questões como estas são usualmente postas sem que outras, mais de fundo estejam, efetivamente resolvidas, questões muitas vezes relacionadas a perspectivas e análises teóricas intrincadas mas fundamentais pelas implicações que têm para os horizontes táticos e estratégicos desse debate. Uma questão central é: prostituição é trabalho? E a que decorre dela, não menos importante: quais as implicações da resposta desta pergunta para a forma como encaramos a luta?
Acredito ser possível começarmos a pensar a relação entre prostituição e trabalho a partir do mais simples da conceituação marxista de mercadoria: logo no capítulo 1 d’O Capital, vemos "mercadoria" conceituada como um produto específico de trabalho concreto específico que por meio de suas específicas propriedades, conferidas pelo trabalho que o produz, satisfaz determinadas necessidades, “seja do estômago ou da fantasia". No contexto da prostituição, temos um cliente com uma necessidade subjetiva contratando um serviço que supre essa necessidade, serviço esse executado por outra pessoa. Não me parece necessária muita abstração para compreendermos que o sexo, nesse contexto, aparece como mercadoria e que como tal, é produzido por trabalho – um trabalho concreto específico. É esperado que essas afirmações causem algum ruído para quem tem o mínimo de consciência sobre a dominação de gênero que perpassa toda a nossa sociedade, mas é fundamental aqui, para o rigor teórico que uma polêmica como essa exige, que cada coisa seja tomada única e objetivamente pelo que é de acordo com o método que tomamos por base e com as categorias e conceitos que nos propomos a utilizar. Trabalho não é uma categoria moral, é uma categoria objetiva e não há nada na objetividade da troca mercantil da mercadoria sexo que remova da atividade que o produz o caráter de trabalho. É certo que os elementos morais que o sexo inevitavelmente traz na nossa sociedade, ainda mais olhado na sua forma mercadoria, terão implicações sociais severas e que estas devem ser igualmente discutidas e compreendidas, mas nenhuma dessas implicações é capaz de comprometer a objetividade da categoria trabalho.
Acredito ser possível começarmos a pensar a relação entre prostituição e trabalho a partir do mais simples da conceituação marxista de mercadoria: logo no capítulo 1 d’O Capital, vemos "mercadoria" conceituada como um produto específico de trabalho concreto específico que por meio de suas específicas propriedades, conferidas pelo trabalho que o produz, satisfaz determinadas necessidades, “seja do estômago ou da fantasia". No contexto da prostituição, temos um cliente com uma necessidade subjetiva contratando um serviço que supre essa necessidade, serviço esse executado por outra pessoa. Não me parece necessária muita abstração para compreendermos que o sexo, nesse contexto, aparece como mercadoria e que como tal, é produzido por trabalho – um trabalho concreto específico. É esperado que essas afirmações causem algum ruído para quem tem o mínimo de consciência sobre a dominação de gênero que perpassa toda a nossa sociedade, mas é fundamental aqui, para o rigor teórico que uma polêmica como essa exige, que cada coisa seja tomada única e objetivamente pelo que é de acordo com o método que tomamos por base e com as categorias e conceitos que nos propomos a utilizar. Trabalho não é uma categoria moral, é uma categoria objetiva e não há nada na objetividade da troca mercantil da mercadoria sexo que remova da atividade que o produz o caráter de trabalho. É certo que os elementos morais que o sexo inevitavelmente traz na nossa sociedade, ainda mais olhado na sua forma mercadoria, terão implicações sociais severas e que estas devem ser igualmente discutidas e compreendidas, mas nenhuma dessas implicações é capaz de comprometer a objetividade da categoria trabalho.
No contexto da prostituição, portanto, se faz necessário compreender que sexo é a mercadoria colocada em troca e o que se convencionou chamar de "trabalho sexual" ou "prostituição" é o trabalho que a produz, trabalho concreto específico. Decorre também disso serem as prostitutas/trabalhadoras sexuais substancialmente trabalhadoras e objetivamente uma categoria profissional, sem prejuízo de aprofundamento nas particularidades dessa atividade (inclusive nas implicações morais).
Disso decorre desatarmos alguns nós que ainda que difíceis, por conta tanto do hábito quanto da carga moral que o assunto traz, comprometem a precisão teórica dessa discussão. Nesse grau de precisão, torna-se inadequado afirmar, por exemplo, que prostituição consiste na “venda do corpo”, já que compreendemos que a mercadoria posta em troca é a mercadoria sexo, não o corpo da trabalhadora objetivamente. Essa é uma afirmação tão viciada que acaba por ser de fato difícil, frequentemente, percebermos o absurdo que ela carrega se tomada literalmente: se a prostituta efetivamente vendesse seu corpo, o segundo cliente da noite deveria pagar o preço combinado para o primeiro, não para ela, já que o primeiro tornou-se proprietário dela; assumiria também do antigo proprietário a responsabilidade da sobrevivência dela (alimentação, moradia etc) - não por um tempo predefinido, mas até que a vendesse novamente ao terceiro ou até que decidisse, por iniciativa exclusivamente sua, abandoná-la de volta à rua. É explícito o absurdo dessa afirmação e nem com muita boa vontade seria possível colocar esse cenário como análogo à realidade desse trabalho. Talvez também se argumentasse que se trata, portanto, de um aluguel, e todo o exercício retórico geraria nada senão analogias e aproximações, forçando-nos a retornar, para o bom caminhar do debate, à realidade objetiva: o cliente não paga por um corpo, mas pelo serviço que aquele corpo executará. Não é o corpo que é posto como mercadoria, o que caracterizaria uma relação de escravagista. Para o cliente, a mercadoria é o sexo; para o patrão/patroa, chamados por vezes de cafetão/cafetina, o que é vendido pela trabalhadora é a capacidade de trabalho, ou seja, o trabalho que produz a mercadoria sexo.
Essa discussão é fundamental porque ela é premissa para todas as outras: discutir estratégia e táticas de luta para a questão do trabalho sexual demanda que isso esteja bem resolvido e as consequências dessa compreensão, a de prostituição como trabalho, para as discussões estratégicas e táticas, não são pequenas. Vejamos um exemplo concreto e de grande relevância para o debate:
Compreender que o trabalho sexual é um trabalho concreto e que trabalhadoras e trabalhadores sexuais conformam uma categoria profissional insere o debate nas discussões de estratégias e táticas sindicais - o que é pouco simples, já que estamos falando de uma atividade não industrializada e que acontece ainda majoritariamente em moldes artesanais, ou em organizações análogas às das corporações de ofício. O que é certo, no entanto, é que o elemento comum entre as diversas categorias profissionais e o único capaz de unificar a luta trabalhista num movimento histórico de classe não é o trabalho concreto, mas o abstrato. Não é nas particularidades e detalhes de cada atividade profissional, que variam ao infinito, que se encontra a singularidade da exploração do trabalho no capitalismo, mas justamente no fato de que todos esses trabalhos concretos são reduzidos a mera massa de valor, a uma “grande geléia” de trabalho abstrato simples. A implicação disso é que ainda que seja fundamental o movimento de compreender e articular politicamente, com objetividade, as particularidades de cada categoria profissional, é na sua universalidade que o trabalho encontra a organização classista de caráter revolucionário. Ao mesmo tempo, o caráter abstrato do trabalho, sua universalidade, só pode se fazer aparente no movimento organizado de luta, onde as aparências das expressões particulares saem de foco. A organização revolucionária dessa categoria, portanto, pressupõe uma organização trabalhista particular anterior que permita a organização junto à classe.
Um problema que se apresenta a partir disso diz respeito às possibilidades reais que essa categoria teria de se organizar politicamente. Se estamos falando de organização de caráter TRABALHISTA a partir da articulação política das necessidades particulares decorrentes dessa atividade profissional no seu momento histórico específico, estamos falando de organização política em torno de demandas: a) que correspondam a necessidades imediatas dessa categoria; b) que façam sentido no contexto político-econômico na qual se inserem; e c) que se apresentem como possíveis de serem solucionadas a ponto de justificar o engajamento político para essas trabalhadoras. Nesse sentido, o não-reconhecimento, no âmbito trabalhista, dessa atividade e de tudo o que faz parte dela impõe limites claros à possibilidade de organização política. Qualquer demanda trabalhista, seja do âmbito da remuneração, do tempo de trabalho, do vínculo empregatício, da seguridade social, da segurança do exercício etc, pressupõe o reconhecimento não apenas da atividade profissional, mas da relação trabalhista na sua totalidade - o que inclui a figura do patrão, por exemplo. Nenhuma dessas demandas trabalhistas é possível se a figura do empregador é oculta na forma de lei. Abordagens de caráter auto-referenciado "abolicionista" que neguem a regulamentação, hoje, são incapazes de possuir, nesse sentido, concretude suficiente para permitir organização política real e orgânica da categoria, pois substituem o horizonte de lutas trabalhistas concretas por promessas de um futuro idílico naturalmente estranho a quem interessar não somente o "o quê", mas a viabilidade do "como". É notável e compreensível, portanto, que a única demanda política capaz de catalisar organização política real e classista da categoria, no atual contexto, é a regulamentação. Não qualquer regulamentação, decerto, mas alguma.
Sem demandas políticas concretas que respondam às dificuldades da realidade imediata não é possível que exista organização política real. Se não há demandas que possibilitem grupalização e organização, sem dúvida estão seriamente comprometidas as condições materiais para o salto de consciência que possibilita a organização política junto à classe.
Nesse sentido, a discussão acerca da regulamentação do trabalho sexual se apresenta para nós de forma outra que para as feministas liberais (autodeclaradas ou não): a regulamentação não é tratada aqui como um objetivo-fim, um horizonte capaz de resolver a exploração sexual, mas como um passo tático possibilitador da organização classista e revolucionária dessa categoria. Não se trata, portanto, de fazer coro com os argumentos iludidos de que "a regulamentação é fundamental para que prostitutas parem de morrer e tenham dignidade no trabalho", porque não faz parte da nossa perspectiva política a ilusão de que os instrumentos de dominação do Estado Burguês, como a sua Justiça, seriam capazes de destruir a dominação que os justifica; se trata, fundamentalmente, de construir as bases materiais para a organização dessas trabalhadoras junto à sua classe. Isso – e apenas isso – é capaz de construir uma luta capaz de produzir melhores condições de vida para as trabalhadoras e trabalhadores dessa categoria, seja no âmbito das conquistas imediatas de redução de danos, seja no horizonte de uma nova e emancipatória sociedade.
*Como diz o nome, esse texto é um rascunho. Estou, como sempre, aberta a debates, desde que não descambem pra falta de respeito ou pra desonestidade. Sei que esse texto não está tão didático quanto os da página geralmente são, mas é isso... nem sempre dá. Na dúvida, pergunta e vamos trocar figurinhas! Bora conversar e construir.
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