Crônica - Crônica da Inveja - Romildo Sant'Anna
Crônica da inveja
Há
suposições, quiçá levianas, de que Shakespeare jamais existiu. Sob esse
nome se ocultariam alguns gênios da literatura britânica. Indaga-se:
como um escritor, sozinho, conseguiria urdir tantas obras-primas e
mergulhos tão profundos nos confins das paixões e tormentos da alma?
“Hamlet” é encarnação aflita da dúvida; “Rei Lear”, o escorraçado e
miserável; “Macbeth”, o enfeitiçado pelo poder.
“Otelo” é um tratado sobre a inveja. Mais, vêmo-la fermentar ante
nossos olhos sob os punhais mais agudos da literatura dramática. Fala do
“mouro de Veneza”, homem de boa índole que dedica leal amizade ao
inescrupuloso Iago. Porém esse, ardiloso, remói às escuras: “Odeio-o!” A
tragédia começa com o casamento de Otelo e Desdêmona, instaurando-se o
momento crucial para o invejoso: Vê o invejado no auge da felicidade.
Com obstinado afã de atingir Otelo, Iago cavila, aproxima-se de uns,
futrica com outros com sutis estocadas. Torce a cravelha dos fatos para
que a música se afine a seus intentos. Disfarçando a má intenção,
espalha alusões maliciosas sobre a reputação de Otelo, excita-lhe
dúvidas sobre a esposa Desdêmona, acusa-a de infiel e, aos poucos,
enleia os fios de sua rede para os objetivos almejados. No texto
teatral, Iago morre, punindo-se a desdita. Como na tragédia grega,
esconjura-se o mal e infunde-se na plateia um clima de terror.
Pior, muito pior é na vida real. Invejoso é o que possui a falsidade
injetada na garganta. Delicia-se com difamações e discórdias. Mas, ao
atingir o outro, amesquinha-se. Não me lembro se foi Mário Quintana quem
disse: os sábios falam sobre ideias; os comuns falam sobre coisas; os
medíocres falam sobre pessoas, com maledicência. Eis a silhueta baça do
invejoso: afeito às fraudes, alardeia-se espirituoso. Não é fácil
percebê-lo, pois se oculta em dissimulações. Porém, ensinava Platão, há
meios de descobri-lo: revela-se mais nos pequenos gracejos que em um ano
de convívio. O invejoso é uma sombra da língua afiada.
A inveja, ou angústia de não se ter o que é do outro, é um estado
patológico. Confunde-se com outros pecados da alma. Como Iago, amiúde
falsifica a imagem de boa gente, aproveita-se dos que o cercam, usufrui
do que pode, insinua-se próximo das causas nobres e de amigos. Mas seus
relacionamentos são frágeis, oblíquos, pois com a mesma rapidez com que
se acerca de uns, afasta-se de outros. Conduz-se na direção de seus
interesses e de modo a projetar-se entre as pessoas.
Nos escritores comuns, pensam os estudiosos, as ações dos personagens
revelam-lhes a substância humana. Em Shakespeare, a substância humana é
que determina as ações dos personagens. Assim, sua obra é cruamente
explícita, de cena em cena, como a cadência abafada dum cortejo funeral.
Eis “Otelo” (1603), retrato esculpido com palavras. Enfoca a baixeza
dos apalermados.
Romildo Sant'Anna
professor, jornalista, cronista
São José do Rio Preto -SP.
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