A história do Pontal da Marambaia

Pontal da Marambaia - A intervenção no meio ambiente por remanescentes de escravos e a Marinha do Brasil. Dano ambiental, preservação, ou direitos adquiridos pelo quilombolas?

por Aloysio Breves


Ruínas da casa-grande da fazenda da Marambaia, Praia da Armação, Ilha de Marambaia, RJ.
Aloysio Breves
O envolvimento de descendentes de escravos isolados em uma ilha; um centro de adestramento da Marinha do Brasil; o interesse político voltado para a especulação imobiliária e turística; a história de poder do maior escravocrata do Brasil Imperial; e a preservação de um paraíso ecológico; constituem a base para a reflexão sobre uma questão judicial presente no noticiário do país – a ilha da Marambaia.
Situada no município de Mangaratiba, RJ, a Marambaia é um paraíso ecológico cercada pelas águas da baía de Sepetiba, com rica fauna e flora e uma parcela de mata pluvial costeira, que está praticamente  extinta no Rio de Janeiro, e que se enquadra nos conceitos de Área de Proteção Ambiental considerada de vital importância para o meio ambiente.
Das terras de Guaratiba, uma extensa restinga arenosa avança para o leste numa extensão de 45 quilômetros terminando no Pontal com o pico da Marambaia numa altura de 480 metros .
O decreto "Quilombola"
Em 20 de novembro de 2003, com a progressiva pressão de organizações não-governamentais, políticos, populações afro-descendentes e minorias em geral, foi publicado o Decreto nº 4.887 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
  Em seu Artigo 2º. está a definição que mudaria o conceito de quilombos: "Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida".
Refúgio de piratas e tráfico de escravos
A Marambaia ou  ”cerco do mar” na linguagem indígena é rica em águas. Devido a sua extensão serviu de abrigo e reposição de víveres para piratas no século XVII.
Em 27 de fevereiro de 1856 o comendador Joaquim José de Souza Breves, respaldado pela Lei no. 601 de 18 de setembro de 1850, fez constar no Livros de Registros de terrras da paróquia de Itacuruçá, o seguinte:
"Declaro que sou proprietário da Ilha da Marambaia, cujos terrenos são cultivados, comprehendendo nos seus limites a restinga e o mangue de Guaratiba até a divisa do canal, e também são asseçorias a mesma ilha, as três pequenas ilhas fronteiras denominadas Saracura, Bernardo e Papagaio." (Livros de Registros de terrras da paróquia de Itacurussá."
Com sua morte em 30 de setembro de 1889, a fazenda entra em decadência, restando de pé a sede, uma pequena capela (ambas localizadas na praia da Armação) e uma senzala.
O CADIM - Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia, criado pela Portaria no. 0084, de 19 de janeiro de 1981 do Ministério da Marinha, subordinado ao Comando de Fuzileiros Navais é o gestor responsável pelo Pontal da Marambaia.
Ilhéus pescadores, remanescentes dos antigos escravos dos Breves, constituem 268 famílias residindo no local administrado pelo Governo. Hoje, reivindicam a posse da terra através de sua associação – AQUIMAR – Associação dos Quilombolas da Ilha de Marambaia.
A presença da Marinha do Brasil – É possível preservar a Marambaia sem a presença militar?
Responsável por esta Unidade de Conservação nos últimos anos, a Marinha tem evitado a degradação ambiental e especulação imobiliária, e afirmam alguns que sem essa presença militar, o lugar estaria em franco processo de favelização e ocupação urbana desordenada.
Em sítio divulgado na Internet o Comando Geral do Corpo de Fuzileiros exibe suas ações cívico-sociais efetuadas na Ilha da Marambaia, destacando: o transporte marítimo, apoio ao Transporte de cesta básica e material de construção, assistência Médico-Ambulatorial, assistência Religiosa, área de Navegação Restrita e Proteção à Pesca, espaço do pescador e artesão, máquina de gelo para pescado e apoio à Educação e Cultura. A ilha é usada como base de treinamento e adestramento dos fuzileiros, com diversas áreas delimitadas para tiro e testes de armamentos e acampamentos militares.

O reino da Marambaia. Um feudo do Comendador Breves.
O Comendador Joaquim José de Souza Breves, figura lendária do Brasil Imperial, ficou conhecido como "rei do café" pela gigantesca produção de café em 1860 (360 mil arrobas) no Vale do Paraíba. Faleceu em 30/09/1889, mais de um ano após a libertação dos escravos no Brasil, na sua fazenda de São Joaquim da Grama, Passa Três, Rio Claro, RJ..
Chegou a possuir 90 fazendas com o impressionante número de 6 mil escravos. Foi o maior escravagista do século XIX no Brasil. No Primeiro Reinado tornou-se membro da Guarda Nacional, assistiu ao "Grito do Ipiranga" e como recompensa pela sua fidelidade ao Imperador D. Pedro I, adquiriu o título de Comendador da Ordem da Rosa.
Suas terras se estendiam pelos atuais municípios de São João Marcos, Piraí, Pinheiral, Mangaratiba, Resende, Barra Mansa, Rio Claro e Piumbí. Costumava dizer que podia ir do oceano até Minas Gerais sem sair das terras do Breves.
O desembarque de africanos
Na fazenda da Marambaia, no território de Mangaratiba, o Comendador Breves criou um verdadeiro entreposto para o estabelecimento de cativos que abasteciam suas fazendas de café.
Os escravos desembarcados dos "negreiros" permaneciam na ilha para reconstituição das forças perdidas na travessia do Atlântico para então, retemperados, subirem a serra do Piloto para as fazendas do Vale do Paraíba. A Marambaia era uma estação de engorda do pessoal do eito e de reprodução para aumento do plantel.
O jornalista Assis Chateaubriand visitou a Marambaia em 1927, deixando crônica no “O Jornal”, sob o título: “Um viveiro morto da mão-de-obra negra para o cafezal - Impressões vividas de uma visita à Fazenda do Comendador Joaquim José de Souza Breves no Pontal da Marambaia”. Escreve o jornalista:
"A casa da fazenda que visitamos e que é hoje propriedade do Ministério da Marinha, está muito danificada. É um solar de 58 metros de frente, com um largo alpendre corrido em toda a extensão da casa. Ruíram algumas das dependências, como decorações dos tetos de várias peças já abatidas pelo tempo. O molhe de pedras onde atracavam os navios “Marambaia e Emiliana”, de propriedade do antigo senhor, já não existe mais. O grande trapiche à beira-mar jaz de ruínas. As senzalas desapareceram, e as árvores frutíferas morreram".
Encontrando-se com ex-escravos de Joaquim Breves, relata o jornalista:
"Adriano Júnior disse-me que o senhor era o pai da pobreza. Quando vinha de Mangaratiba para Marambaia, a bordo ou do vapor “Marambaia”, ou do “Emiliana”, a senzala se alegrava. Gustavo Vítor me disse:
- Gente vinha da baía d'angola premero pra aqui. Engordava, e despois ia pra roça, trabaiá no cafezá”.
Na praia do Saco de Mangaratiba onde os "Breves" tinham seus armazéns de café, iniciava a estrada que levava ao altiplano da Serra do Piloto em Rio Claro , RJ, construída por Joaquim Breves para o trânsito de mercadorias e escravos. Hoje, ruínas de um teatro, bebedouros em pedra, e curvas fenomenais de onde se avista o mar, nos levam até Rio Claro, RJ.
Conflito - A posse da terra - O Breves era o dono?
Em 1850 é aprovada a Lei de Terras, que em seu artigo 5º. dizia: “Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro”.
A Lei não tratava de terras de Marinha, dispensando a apresentação de documentos comprobatórios. Bastava para o registro declarar: “o nome do possuidor, designação da Freguesia em que estão situadas; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida; e seus limites”. Facilidades que propiciaram ao Comendador Joaquim José de Souza Breves efetuar o registro de sua terra atendendo aos seus interesses mais imediatos.
Márcia Menendes Motta, doutora em História pela Universidade de Campinas, aponta para o fato de que o Comendador Breves não era proprietário das terras da Ilha de Marambaia.
"Nenhum indício, portanto, confirma a legalidade de sua ocupação. Tal com tantos outros fazendeiros do século XIX, ele era “senhor e possuidor” que, ao arrepio da lei, ocupava terras devolutas ou terras da nação (como as da marinha) ferindo reiteradamente a legislação então existente. As evidências indicam que o Breves – senhor e possuidor da Ilha da Marambaia utilizou de seu poder e prestígio para ocupar a região, construindo um entreposto de mão-de-obra escrava contrabandeada da África para uso em suas fazendas no altiplano do Vale do Paraíba"..
Quilombolas organizados
Algumas organizações atuam na ilha da Marambaia. Uma delas é a KOINONIA -entidade ecumênica de serviço, composta por pessoas de diferentes tradições religiosas, reunidas em associação civil sem fins lucrativos, que pretende mobilizar a solidariedade ecumênica e prestar serviços a grupos histórica e culturalmente vulneráveis e aqueles em processo de emancipação social e política.
Outra, o Observatório Quilombola - espaço interativo, interdisciplinar, dedicado à coleta, organização e análise de informações relativas às comunidades negras rurais e quilombolas, em seus contextos locais e regionais, assim como às políticas pertinentes. Com um sítio na Internet bem documentado, com apresentação da história e dissabores dos ilhéus, relatórios e documentação, presta relevantes serviços na divulgação das questões sociais que envolvem o tema.
Pescar – principal atividade dos ilhéus-quilombolas
Com a venda da propriedade e o abandono dos descendentes de escravos, sua subsistência foi viver da pesca, com o uso canoas a remo confeccionadas ou compradas, e redes confeccionadas por eles próprios.
Com a instalação da Escola de Pesca Darci Vargas (nos anos 30), iniciativa de Levi Miranda, com o apoio de Getúlio Vargas e da Fundação Cristo Redentor, o lema adotado foi: “uma casa e uma canoa a motor para cada pescador”.
  Novas instalações, hospital, fábrica de gelo e de sardinha e casas para funcionários, são lembrados pelos ilhéus como momentos de prosperidade, até o início dos anos 70, quando houve o fechamento da Escola de Pesca Darcy Vargas e a chegada do CADIM – Centro de Adestramento da Marinha.
Segundo Fábio Reis Mota, a falta de pescado provocado pelas traineiras de São Paulo e Santa Catarina, neste período, obrigam os ilhéus-pescadores a deixar suas águas tranqüilas e partir para a pesca em alto-mar no costão da Ilha.
"As transformações implicaram um reordenamento dos saberes "sobre os recursos naturais, já muito bem fundamentado na região onde tradicionalmente pescavam, mas incipiente na outra região, como também uma transferência de técnicas tradicionais, como a pesca de gorete ou arrasto de praia, para a pesca de rede de espera e linha".
A Ação Civil Pública
O projeto Territórios Negros (Egbé) produziu em 2002 um relatório preliminar sobre a Ilha da Marambaia, que serviu de base à Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal.
A descendência dos ilhéus-pescadores moradores da Ilha da Marambaia é confirmada, pois descendem, direta ou indiretamente, de famílias que ocupam a Ilha há no mínimo 120 anos, por serem remanescentes de escravos de duas fazendas que funcionavam no local até a abolição da escravatura. Outra constatação é a posse pacífica da terra, ocorrida logo após a morte do Comendador Breves em 1889, e do abandono da Ilha por parte de sua família.
Faz parte da memória dos pescadores a última viagem do Sr. Breves à Ilha, na qual ele teria doado (apenas verbalmente) cada uma de suas praias a um conjunto de famílias. Conclui o relatório que o enquadramento da população é coerente com a caracterização sociológica acerca das chamadas “terras de preto”, segundo a qual estas seriam formadas por domínios doados.
Decisão do Ministério Público Federal
A Justiça Federal do Rio de Janeiro (Ação civil pública do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro - Processo nº2002.51.11.000118-2.) decidiu que a comunidade quilombola residente na Ilha da Marambaia deve permanecer no local e ainda receber o título de propriedade da terra. A ação pedia que fosse reconhecido o direito dos remanescentes do quilombo que existia na ilha de continuarem morando no local.
Determinou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além de identificar a comunidade, promova a delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras ocupadas no prazo de um ano (a contar da data da sentença), sob pena de multa de cem mil reais por mês que ultrapasse esse prazo.
Em 14 de agosto de 2006, o Incra publicou no Diário Oficial da União um relatório que identificava as terras como quilombolas. No dia seguinte, o Incra publica nova portaria anulando a anterior.
"Essa comunidade se encontra na região há mais de 150 anos. São descendentes de escravos, se enquadram no conceito de quilombo adotado pela legislação brasileira e se encontram em uma situação de muita precariedade, sem poder manter o seu estilo de vida tradicional. Corria o risco de desaparecer, de ser virtualmente exterminada, e esta sentença assegura sua continuidade.
Quem nega esse dado parte de um conceito equivocado de quilombo, que diz que é só o local formado por escravos fugidos. Quilombo é o local que abriga pessoas provenientes de um passado de escravidão, mas que não são, necessariamente, escravos fugidos", assegura o procurador.
Balneário oficial de Presidentes
Em 11 de abril de 2004, o jornalista Elio Gaspari publicou em "O Globo" Edição de Domingo, em sua coluna o artigo "A grande Marambaia de FFHH".
O jornalista compara o preço do escravo negro que custava 25 bois, algo em torno de R$ 12 mil reais e a aplicação de uma poupança nos dias de hoje, bem como os juros altos de 2004. Refaz a trajetória dos bens dos Breves que foram parar na mãos do Governo e  sua ruína, e finaliza:
"Talvez FFHH não possa mesmo baixar logo os juros, mas o Brasil melhoraria muito se fosse restabelecida a paridade, fazendo com que o rendimento do dinheiro com que se comprava um escravo no século XIX se pague, hoje, o salário de um só cidadão forro das vésperas do XXI".
O atual Presidente da República também escolhe para o descanso a Ilha da Marambaia. O jornal "O Estado de São Paulo" mostra a permanência de Lula na Marambaia, onde passou o feriado de carnaval acompanhado da família. Para sua segurança a Marinha montou forte esquema, com apoio de uma fragata e duas lanchas. O barco do presidente, que levava também seguranças do Planalto, ficou ancorado a poucos metros da Restinga, uma área administrada pela Marinha.

Ilha da Marambaia, RJ
Aloysio Breves


Ruínas da casa-grande da fazenda da Marambaia, Praia da Armação, Ilha de Marambaia, RJ.
Aloysio Breves


Comendador Joaquim José de Souza Breves, rei do café no Brasil Imperial.
Coleção IHGB-Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, RJ.


Ruínas da senzala, Praia da Armação, Ilha de Marambaia.
Aloysio Breves


Bibliografia

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