A pesada herança do comunismo italiano

A pesada herança do Comunismo Italiano

"Conceitos como `direita´, `esquerda´, `democrata´, `reacionário´, para nós, marxistas, não podem ser conceitos absolutos. A verdade é sempre relativa e concreta. Isso vale para qualquer período, mas é particularmente válido para o período atual" (Andrei A. Jdanov, Relatório à I Conferência do Kominform, 25 de setembro de 1947) .

Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Carlos I. S. Azambuja

A Itália foi o único país da Europa Ocidental onde a esquerda stalinista prevaleceu sobre a chamada "esquerda democrática", abstração feita do período do secretariado-geral de Enrico Berlinger no PC Italiano, a partir de 1972, e do eurocomunismo "de face humana, civilizado e culto". Antes disso, muito antes, em Bolonha, cidade "vermelha e burguesa", o Partido Comunista Italiano encarnou, por muito tempo, o modelo do futuro partido definido por Togliatti (1) desde antes da queda definitiva do fascismo: um "partido novo", não mais uma elite de revolucionários profissionais, vassalos de Moscou, mas um partido de massas, nacional e legal.

Entretanto, até a morte de Togliatti, em 1964, o PCI "sempre foi" - como afirmava com clareza o historiador Renzo De Felice, na véspera de sua morte - "um partido stalinista, nem revolucionário, nem reformista, mas apenas um simples elemento do sistema da URSS". Togliatti, que foi um dos primeiros artesãos da stalinização do Movimento Comunista Internacional assumiu anos depois uma "maquiagem de fachada", posicionando-se em prol dadesestalinização e em favor do "policentrismo" dentro do MCI (2).
Palmiro Togliatti foi, sem dúvida, um dos grandes atores da História do Século XX e uma das mais fortes personalidades do comunismo internacional. Seus camaradas tratavam-no como il Migliori ("O Melhor"). Em seus 18 anos de exílio, 10 dos quais passados na URSS, em nenhum momento sua autoridade de chefe do partido sofreu qualquer arranhão e ele nunca deixou de cumprir uma função decisiva de orientação da atividade do "Centro Estrangeiro"(expressão que designava a direção do PCI clandestino, instalada em Paris em janeiro de 1927).

Togliatti, que foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano em 21 de janeiro de 1921, desempenhou o cargo de Secretário-Geral do partido de 1926 até sua morte, em 1964 (3). Ele era dotado de uma prudência ardilosa, extraordinariamente hábil para decifrar, nas flutuações de jargão utilizadas pelo Komintern, a menor nova inflexão carregada de sentido ou a próxima mudança de linha. Privado de todo e qualquer escrúpulo, Togliatti se posicionava sempre do lado certo do golpe. Numa biografia traçada sobre ele pela seção de quadros do Komintern, datada de 21 de setembro de 1949 - pois todos, naquela charmosa instituição, eram espiões e se sabiam espionados - está assinalado "o fato de que Togliatti nunca exprimiu sua opinião antes de uma questão ter sido formalmente decidida" (3).

Em 1930, o PCI era um partido de quadros, com cerca de 7 mil inscritos, e adere sem maiores preocupações à linha stalinista que designou a social-democracia, rebatizada de "social-fascismo", como o "inimigo principal", chegando mesmo a qualificar, em 1934, o movimento Giustizia e Libertà(que representou um papel importante nos meios antifascistas exilados e durante a Resistência) de movimento fascista dissidente.

Para Togliatti, a consagração, como recompensa por sua disciplina de ferro e seu servilismo, chegou com o VII Congresso da Internacional Comunista. No dia da sessão inaugural, em 25 de julho de 1935, em Moscou, foi-lhe dada a honra de pronunciar, num clima de histeria coletiva, uma "mensagem de felicitações" ao camarada Stalin. Eis alguns trechos da mensagem: "Ao camarada Stalin, chefe, guia e amigo do proletariado de todo o mundo (...) Sob sua direção, a URSS tornou-se a muralha inexpugnável da revolução socialista (...) Camarada Stalin, na luta contra os contra-revolucionários trotskistas e zinovievistas, na luta contra os oportunistas de direita e de esquerda, você manteve a pureza da doutrina marxista-leninista, desenvolvendo-a como uma nova fase da revolução mundial que se inscreve na História como a época de Stalin" (4).

Nesse Congresso, Togliatti foi um dos eleitos para o Secretariado Político doKomintern, juntamente com Georgi Dimitrov, Dimitri Manulski, Wilhelm Pieck, Otto Kusinen, André Marty e Klement Gottwald.

Como membro dirigente do Komintern, Togliatti cometeu diversas ignomínias. A respeito dos cerca de mil italianos que deixaram a Itália fascista a fim de participar, com entusiasmo, da edificação do comunismo na URSS, sabe-se hoje, com precisão, que 108 foram detidos, torturados, condenados e executados entre 1935 e 1938. Todos haviam sido fichados pelo responsável italiano da seção de quadros do Komintern, Antonio Roasio, fiel a Togliatti.

No início de 1937, na época do processo contra o "Centro Paralelo" que tinha a fama de ser trotskista, Togliatti não hesitou em afirmar: "Trata-se de agentes do fascismo. Temos provas recentes de suas relações com a Alemanha, com a Gestapo e também com o Japão". Em meados do mesmo ano, seis membros do Comitê Central do KPD (PC alemão) desapareceram. Em 1938, chegou a vez de Bela Khun - outro "kominterniano" - ser executado.

Togliatti foi mandado para a Espanha, onde atuou, em nome do Komintern, no período de 14 de julho de 1937 a 25 de março de 1939, tendo ficado vinculado diretamente a Stalin. Aí, "Ercoli" torna-se "Alfredo" (seus codinomes) e aumenta ainda mais sua ignomínia. Em agosto de 1938, seu nome figurou entre os seis signatários de uma Resolução da presidência da Internacional Comunista que decidiu pela dissolução do Partido Comunista Polonês (KPP). Convocados a Moscou sob os mais variados e enganosos pretextos, os dirigentes poloneses foram detidos e executados. Ou seja, Togliatti ratificou a condenação à morte de dezenas de dirigentes do KPP (3)

Aos olhos de Stalin, o KPP tornava-se um obstáculo a ser removido para um possível acordo com a Alemanha nazista, pois a grande influência interna do nacionalismo polonês e a presença de numerosos judeus em sua direção deixavam pressagiar uma forte resistência de sua parte a um acordo desse tipo. Para se justificar, Togliatti dirá a seus primeiros biógrafos, em 1953, que seguia de perto as atividades e vicissitudes do KPP, tomando consciência, de forma clara, da sua evolução anti-soviética.

Todavia, além de Togliatti conhecer os dirigentes poloneses há mais de dez anos e nunca os ter criticado, suas declarações são suspeitas, pois a competência de seu secretariado não se estendia à Polônia, cuja assistência era responsabilidade de Manulski.

Na Espanha, onde detinha considerável poder, "Alfredo" participou ativamente da repressão ao POUM (Partido Operário Unificado Marxista), um partido anti-stalinista, e da eliminação do seu líder, Andrés Nin. Durante a II Guerra Mundial, Togliatti se viu também implicado na execução de quadros do Partido Comunista Espanhol e de ex-membros das Brigadas Internacionais que fizeram a má escolha de buscar refúgio na "pátria do socialismo".

Numa célebre entrevista concedida em 1956 à revista Nuovi Argomenti, Togliatti assim respondeu à questão de saber se era possível se opor, em Moscou, à espiral demente da repressão: "Se eu o tivesse feito, eles me teriam matado. A História dirá se valia mais morrer ou viver para salvar o partido" (3). Essa foi uma maneira elegante de dizer que se deve primeiro cuidar da própria pele, considerada mais importante do que a dos outros, mesmo quando esses outros são camaradas.

De junho de 1941 a janeiro de 1944, Togliatti dedicou a maior parte de seu tempo à propaganda radiofônica com destino à Itália. Esse período foi também aquele em que ele deu uma demonstração de como encarava as forças objetivas, leais ou hostis ao partido mundial da revolução que, enquanto organização coletiva, intérprete e instrumento da História, detinha todos os direitos. Trata-se do caso dos prisioneiros de guerra italianos, capturados pelos soviéticos em dezembro de 1942 e em janeiro de 1943.

Num primeiro momento, a agência Tass e a imprensa soviética falaram de 80 mil a 115 mil prisioneiros. L´Alba, o jornal dos prisioneiros de guerra italianos, do qual - pasmem! - Togliatti se autoproclamou diretor-adjunto, falou em 80 mil a 83 mil prisioneiros. Em 5 de março do ano seguinte, Togliatti, pela Rádio Moscou, evocou "mais de 40 mil prisioneiros".

Após a guerra, porém, os soviéticos disseram que iriam libertar todos os prisioneiros: 19 mil, o que provocou grande perturbação na Itália. Um ano mais tarde, em julho de 1946, a embaixada soviética em Roma declarou que 21.193 prisioneiros italianos seriam repatriados. Na realidade, todavia, esse número não chegou a 12.500 ex-combatentes do exército enviados à URSS pelo regime fascista. Os outros eram ex-prisioneiros dos alemães ou mesmo italianos que haviam sido obrigados a ir trabalhar na Alemanha.

Desde essa data e até hoje, persiste a dúvida sobre o destino das outras dezenas de milhares de militares italianos que caíram nas mãos do exército soviético e que desapareceram sem deixar rastros, o que atormentou não apenas suas famílias, mas também várias gerações de italianos.

Depois do colapso da União Soviética, o Ministério da Defesa da Federação Russa identificou 64.400 nomes de soldados italianos detentos nos campos soviéticos, sendo que 40 mil teriam morrido e 20 mil não foram identificados. Chega-se, assim, a um número global de cerca de 85 mil prisioneiros de guerra italianos na União Soviética.

O comportamento de Togliatti diante dessa tragédia tornou-se conhecido a partir de sua correspondência com um de seus subordinados, Vicenzo Bianco, representante italiano junto ao Comitê Executivo do Komintern, que pedira a "Ercoli" que interviesse junto às autoridades soviéticas a respeito do assunto. Togliatti respondeu-lhe de maneira glacial: "Nossa posição de princípio com relação aos exércitos que invadiram a União Soviética foi definida por Stalin, e nada há mais a dizer. Porém e, na prática, um bom número de prisioneiros deve morrer como conseqüência das duras condições de fato. Nada tenho de novo a dizer a esse respeito (...) Não estou sustentando de forma alguma que os prisioneiros devam ser suprimidos, sobretudo porque podemos nos servir deles para obter alguns resultados de outra maneira mas, nas durezas objetivas que podem provocar o fim de um bom número deles, não consigo ver nisso outra coisa que não seja a expressão concreta dessa justiça da qual o velho Hegel dizia ser imanente a toda História".

A reação de Togliatti, com essa resposta, explica-se por sua percepção de que a proposta de Bianco representava um desvio, chamado no jargão stalinista de`humanismo abstrato´: uma tentativa de colocar os interesses nacionais acima dos interesses de classe (3).

Objetivando transmitir segurança e melhorar a relação com os Aliados, em 15 de maio de 1943 Stalin decidiu dissolver o Komintern. Essa decisão favoreceria também o surgimento de uma "via nacional" para o comunismo, própria a cada país. No caso da Itália, Togliatti, herdeiro de Gramsci, já sustentava que a classe operária deveria de alguma forma "nacionalizar-se",a fim de se tornar a força hegemônica do processo revolucionário.

Togliatti deixou Moscou e chegou a Nápoles em 27 de março de 1944 e foi ministro da Justiça de 1945 a 1947, inicialmente no primeiro governo oriundo da Resistência, dirigido por Ferrucio Parri, chefe do Partido da Ação, e depois no governo democrata-cristão de Alcide De Gasperi. Nesse cargo, segundo alguns, ele teria se mostrado suave demais como agente de expurgo antifascista. O fato, todavia, é que ele era muito inteligente para nutrir ilusões sobre a real possibilidade de um expurgo político após mais de 20 anos de fascismo, a não ser liquidando um grande número de funcionários.

Pode ser dito também que, em certo sentido, ele cumpriu, no que diz respeito ao expurgo, um papel moderador, não por humanidade, mas por estratégia política, visando transformar seu partido de quadros em um verdadeiro partido de massas.

Nem por isso Togliatti pode ser tido como um verdadeiro democrata após 1945, como mostram os encontros quase cotidianos que mantinha, no pós-guerra, com o embaixador da URSS Mikhail A. Kostilev. Um desses encontros foi realizado secretamente em um bosque próximo de Roma, em 23 de março de 1948, véspera das eleições legislativas apresentadas como as que deviam assegurar uma vitória certa do PCI e que, ao contrário, representaram um fracasso. Os dois homens teriam discutido, então, a oportunidade ou não de uma insurreição armada.

Em 1951, foi ainda Togliatti que Stalin escolheu para dirigir o Kominform, cargo que ele recusou sob pretextos variados mas, de fato, porque não estava mais certo nem mesmo de seu próprio destino, na atmosfera de loucura dos últimos anos de Stalin.

Togliatti morreu em Yalta em 21 de agosto de 1964. Sua carreira, por mais longa e rica que tenha sido não esgota os 40 anos de história do PCI, mas o restante.

Tudo o que se passou desde então é, seguramente, outra história.

O texto acima é um resumo do tema em epígrafe, publicado nas páginas 535 a 559 do livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.

[1] Palmiro Togliatti (26 de março de 1893 em Gênova-21 de agosto de 1964 em Yalta), um dos fundadores do Partido Comunista Italiano em 21 de janeiro de 1921; Secretário-Geral do partido de 1937 a 1939; membro do Komintern. Baixo, traços finos, um físico delicado, o que lhe valeu o apelido irônico de "Ercoli" (Ercole-Hércules).

[2] Le Petit Larousse Compact, Paris, 1993.

[3] Aldo Agosti, Palmiro Togliatti, Torino, UTET, 1996.

[4] VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, 25 de julho-25 de agosto de 1935, número especial de Correspondência Internacional nº 64, de 7 de agosto de 1935.

Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

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