Diário de um massacre: a tragédia de Seabrae Chatila



Diário de um massacre: a tragédia de Sabra e Chatila

Trinta e tres  anos atrás, mais de 3 mil palestinos foram mortos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, em Beirute. Até hoje não houve punição aos responsáveis pela chacina: o Partido Falangista libanês e os sionistas de Israel










Foto: Reprodução


Baby Siqueira Abrão
Correspondente no Oriente Médio

Campo de Chatila atualmente - Foto: Reprodução
Em setembro de 1982 o Líbano vivia uma situação política tumultuada, de guerra civil. Facções religiosas e partidos políticos libaneses e da Síria – país ao qual o Líbano esteve anexado até 1943, sob domínio colonial francês – promoviam atentados; a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), à época fazendo resistência armada à tomada de seus país pelos sionistas europeus, estava sediada em território libanês; o exército israelense invadira o Líbano em junho de 1982, com sua habitual violência, e instalara bases operacionais em vários locais, incluindo a capital, Beirute.
Israel dava apoio político e logístico à Falange, partido nacionalista da direita libanesa que mantinha um braço armado também apoiado pelas autoridades israelenses. Com os sionistas na retaguarda, a Falange conseguiu levar seu principal líder, Bashir Gemayel, à presidência do Líbano. Nove dias antes de assumir, Gemayel foi morto num atentado promovido, de acordo com a Falange, por forças sírias de inspiração nazista.
Ariel Sharon, então ministro da Defesa de Israel, reuniu-se com a família de Gemayel dois dias antes do massacre de Sabra e Chatila para conversar sobre a necessidade de o partido vingar-se do assassinato de Bashir. A informação foi publicada pela revista Time de 21 de fevereiro de 1983, sob a alegação de que a revelação integrava o Apêndice B do relatório final da Comissão Kahane, que investigou a matança em Israel e considerou o ministro “indiretamente” culpado pela ação. Sharon processou a Time, mas a revista manteve a veracidade da informação, dizendo que se enganara apenas quanto à fonte da notícia.
A participação do exército israelense no massacre foi comprovada. Como ele é subordinado ao Ministério da Defesa de Israel, o ministro, Ariel Sharon, não teve como escapar da responsabilidade pelo crime. Mas escapou da punição. Depois de intermináveis idas e vindas na Justiça da Bélgica – país que permitia o julgamento de estrangeiros acusados de crimes de guerra, e a cujos tribunais 23 sobreviventes do massacre apelaram –, o caso foi encerrado.
Por quê? Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor Franklin Lamb, diretor das organizações Americans Concerned for Middle East Peace [Estadunidenses interessados na paz do Oriente Médio] e The Sabra Shatila Foundation and Palestine Civil Rights Campaign afirmou que o encerramento se deveu “à pressão de Israel, por meio de Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos EUA. Ele ameaçou tirar de Bruxelas o quartel-general da OTAN se o caso fosse adiante”. Rumsfeld foi secretário de Defesa dos governos Gerald Ford e George W. Bush teve papel destacado na “guerra ao terror” – que eliminou grande parte dos direitos civis dos cidadãos dos EUA, promoveu guerras contra o Afeganistão e o Iraque e ameaça o mundo até hoje – e foi um dos fundadores do PNAC, o Project for the New American Center, think tank neoconservador segundo o qual os Estados Unidos devem controlar o mundo.
Em Israel, mais de 400 mil pessoas foram às ruas protestar contra o massacre, obrigando Sharon a renunciar a seu posto. Ele, porém, logo depois voltaria à política, como primeiro-ministro. Em 2006, segundo a versão oficial, sofreu um AVC e desde então encontra-se internado, em estado vegetativo.
O drama vivido pelos moradores de Sabra e Chatila – a maioria palestinos, mas também libaneses e imigrantes pobres de outras nacionalidades – e a ativa participação dos soldados israelenses ficaram registrados nos relatos dos sobreviventes e de outras pessoas que, de um modo ou de outro, testemunharam a chacina, como a enfermeira estadunidense Ellen Siegel e o jornalista inglês Robert Fisk, então sediado em Beirute como correspondente no Oriente Médio do jornal The Independent.
Brasil de Fato foi atrás de alguns desses testemunhos para dar ao leitor uma ideia do que foram aqueles trágicos dias de 1982 – do ponto de vista de quem sobreviveu para contá-los.

Terça-feira, 14 de setembro de 1982
Era quase meio-dia quando a professora Halabi viu duas vans brancas estacionando em frente ao Cemitério dos Mártires, perto da rua Sabra. Delas desceram quatro homens, com aparência de estrangeiros. Halabi imaginou que eles fossem funcionários de alguma organização humanitária europeia disposta a realizar obras de infraestrutura, tão necessárias nos campos de Sabra e Chatila, instalados na parte ocidental de Beirute. Por isso, quando um dos homens se dirigiu a ela, pedindo-lhe, com um sotaque acentuado, que mostrasse os abrigos dos campos, ela não hesitou em levá-los às 11 acanhadas construções.
Enquanto caminhavam pelas ruas estreitas e sujas de Sabra e de Chatila, ladeadas por casas térreas pequenas e muito simples, com paredes de cimento e telhado de zinco, ela dava explicações sobre a vida naquele lugar e falava da necessidade de aumentar os abrigos, pequenos demais para os milhares de moradores. Os estrangeiros tomavam notas e tiravam fotos de tudo.
A certa altura, um deles perguntou por que o lugar cheirava tão mal. Constrangida, Halabi respondeu que as redes de esgoto de Chatila e de Burj al-Barajneh, ali perto, precisavam de reparos. Não era exatamente verdade. Nos campos de refugiados, os esgotos corriam a céu aberto. Mas a professora não teve coragem de confessar isso.
Terminada a vistoria dos abrigos, os homens agradeceram e voltaram às vans. Enrolaram seus mapas ultradetalhados de Chatila, entraram nos veículos e partiram.
Halabi não sabia que dois dos quatro homens eram do Mossad, o serviço de inteligência israelense que atua fora do país, e que os outros dois pertenciam às forças de inteligência do Partido Falangista – incluindo Elie Hobeika, seu chefe. Eles queriam conhecer os locais onde os palestinos se esconderiam durante a ação que teria início dois dias depois, para saber onde encontrá-los. Não por acaso, as centenas de refugiados que se amontoaram nos abrigos foram as primeiras vítimas do massacre de Sabra e Chatila.

Quarta-feira, 15 de setembro de 1982
Nabil Ahmed acordou com o ruído dos aviões da força aérea de Israel sobrevoando, a baixa altitude, os campos de refugiados. Foi informado de que tanques israelenses haviam cercado Sabra e Chatila, impedindo que os moradores saíssem. Ele, porém, conseguiu enganar os soldados e escapar para a casa de um amigo, onde passou a noite.
Ellen Siegel, enfermeira judia solidária com a causa palestina, que trocara os Estados Unidos por Beirute, onde trabalhava como voluntária no hospital Gaza, em Sabra, ouvia tiros enquanto atendia aos pacientes. Preocupada, observou que ao longo do dia o barulho aumentou muito. O que estaria acontecendo lá fora?

Quinta-feira, 16 de setembro de 1982
Nabil voltou para casa de manhã. No final da tarde ouviu o barulho característico de tiros e bombardeios. Sabra e Chatila estavam sendo atacados. Filho mais velho e responsável pela família desde a morte do pai, anos antes, ele levou a mãe, as irmãs e os irmãos para um dos abrigos de Sabra. No começo da noite o ruído das bombas cessou e todos decidiram voltar para casa. Mal tinham posto os pés na rua, uma vizinha apareceu, correndo e gritando: “Escondam-se! A Falange entrou nos campos e está matando todo mundo!”
Pouco antes, por volta das seis horas da tarde, trinta caminhões, carregando 320 homens armados, haviam parado na entrada dos campos. Eles desceram, formaram quatro grupos e tomaram quatro direções diferentes. Embalados por cocaína, uísque e araq (bebida árabe de alto teor alcoólico), começaram a entrar nas casas. Revistavam cada cômodo, estupravam mulheres e matavam os moradores.
A matança não parou nem mesmo quando escureceu e durante a madrugada. Tochas atiradas por aviões israelenses iluminavam as ruazinhas estreitas, planas e tortuosas da Sabra e Chatila, guiando os passos dos assassinos. Homens, mulheres, idosos, crianças, bebês, ninguém escapou dos tiros e das facadas.
Naquela mesma noite, Nabil, sua irmã mais velha e o marido decidiram sair de Sabra. Os outros membros da família resolveram ficar no abrigo. Escondendo-se das tropas e esquivando-se das balas, os três conseguiram chegar a um hospital para deficientes mentais, onde uma tia trabalhava. Nabil correu para o teto do edifício e de lá observava os aviões israelenses soltando os fogos que iluminavam a noite. Conseguia ver apenas os tetos das casas de Sabra e Chatila e por isso não tinha ideia do que acontecia nas ruas. Ouvia somente os tiros, que abafavam os gritos de desespero.
Em outro hospital, o Gaza, Ellen via aviões israelenses voando sobre Sabra e Chatila e ouvia o barulho de artilharia pesada. Logo veria milhares de refugiados entrando no prédio, em busca de proteção. Em pânico, eles gritavam “Israel!”, “A Falange!” e faziam gestos indicando que gargantas estavam sendo cortadas.
Ellen subiu ao décimo andar, de onde era possível ver parte dos campos. Foguetes de fósforo branco eram atirados para o céu e, em contato com o ar, explodiam em fachos de luz. A cada facho seguiam-se rajadas de balas. Um cheiro forte de fumaça e sangue empesteava tudo.
No abrigo de Sabra, os vizinhos e a família de Nabil – mãe, três irmãs, três irmãos, tios e primos – não souberam o que pensar quando o barulho das bombas cessou. Assustados, prenderam a respiração ao ouvir passos apressados lá fora. Minutos depois os falangistas chutavam as portas.
Apontando as armas para as pessoas que se amontoavam ali, mandaram que todas saíssem. Em seguida ordenaram que os homens acima de 14 anos se postassem de frente para uma parede, bem diante da casa de Nabil. E executaram todos eles.
Depois levaram mulheres e crianças, aproximadamente 100 pessoas, apavoradas, para uma garagem próxima. Um dos irmãos de Nabil, de 13 anos, conseguiu escapar, e levou um tiro nas costas. Mesmo ferido, conseguiu chegar ao hospital Akka, onde recebeu os primeiros socorros. Mas não estava a salvo. Homens da Falange o localizaram e o levaram. Dois dias depois seu corpo foi encontrado perto do hospital, morto com uma machadinha.
Na garagem, os falangistas faziam ameaças aos refugiados. Um deles perguntou a uma irmã de Nabil, de 15 anos, se seus brincos eram de ouro ou de zinco. “De zinco”, foi a resposta. O homem a xingou, bateu nela e matou-a com um tiro na cabeça, na frente de todos.
Aquele foi o início da matança. Os milicianos atiravam, recarregavam as armas, voltavam a atirar. Corpos caíam em poças de sangue. Nem todos, porém, tiveram morte instantânea. A certa altura os assassinos suspenderam os tiros e anunciaram que a Cruz Vermelha estava a caminho, para levar os feridos ao hospital. Para organizar a retirada, disseram, precisavam saber quem ainda estava vivo. E pediram que os sobreviventes levantassem a mão. Os que atenderam o pedido foram mortos.
Munir Ahmed, outro irmão de Nabil, embora ferido na perna, não ergueu a mão. Achou mais prudente fingir-se de morto, como mortos estavam todos a seu redor. Com o canto do olho, viu os falangistas roubarem as joias que as mulheres usavam. Decidiu manter-se imóvel. Passou a noite toda assim, caído ao lado do corpo da mãe. De madrugada os assassinos reapareceram, carregando lanternas e atirando. Dessa vez Munir levou um tiro no braço.
Nos pontos mais afastados de Sabra e Chatila, os moradores trancavam as portas, assustados com os fachos de luz lá fora e com as rajadas. Ainda não conheciam a extensão da tragédia. Muitos nem mesmo a veriam: fariam parte dela como vítimas.

Sexta-feira, 17 de setembro de 1982
De manhã, no hospital, chegavam notícias de que havia centenas de mortos em Sabra e Chatila. Para aumentar o desespero dos milhares de palestinos que haviam ido buscar proteção no edifício, os tiros se tornavam cada vez mais altos, indicando que as tropas se aproximavam. A administração do hospital abriu o jogo: os soldados não demorariam a dar buscas ali. Ainda apavorados, sem saber o que fazer ou para onde ir, os refugiados saíram em debandada, sumindo nas ruas de Beirute.
Os pacientes capazes de andar também foram aconselhados a fugir, assim como os funcionários de origem palestina. Rajadas e explosões, cada vez mais altas, mais próximas, obrigaram o corpo clínico a transferir para os andares inferiores do prédio os doentes que haviam permanecido no hospital. Janelas de vidro estouravam e a fumaça se espalhava por todos os cantos. “Portas batiam e os equipamentos reverberavam”, contaria Ellen mais tarde. “Tudo tremia.”
Na garagem de Sabra, de manhã, os milicianos foram conferir sua “obra”. Pouco antes, ao ouvir os passos, Munir protegeu a cabeça com a mão. Isso o salvou, porque um dos tiros dados pelos falangistas foi dirigido a ele. A bala despedaçou um dos dedos, mas não atingiu a cabeça.
Os homens saíram e Munir permaneceu imóvel. Minutos depois retornavam, carregando lençóis com os quais cobriram os corpos. Um deles comentou que a tarefa fora cumprida; agora, era esperar que os buldôzeres destruíssem a garagem e as casas ao redor, cobrindo os corpos com os destroços.
Munir aguardou que eles saíssem e que os passos se afastassem antes de se levantar. Sobrevivera ao massacre; não permitiria que uma demolição lhe tirasse a vida. Com esforço, arrastou-se até a casa de um vizinho. As tropas a haviam revirado. Encontrou uma camiseta e dois shorts. Arrancou a própria roupa, tirou um pouco do sangue que cobria seu corpo e vestiu as peças limpas. Ferido, com dores muito fortes, perdeu mais de uma hora nisso.
Mancando, voltou ao abrigo, desviando dos corpos que jaziam na rua. Um deles era o de Abu Zuheir, seu tio. Munir hesitou. Queria tocá-lo, mas seguiu em frente. No abrigo, nada encontrou além de vazio e silêncio. Então se dirigiu à casa de outro vizinho, tentando encontrar sobreviventes. Mas deparou com dois milicianos. Um deles tirou a faca da cintura para matá-lo, mas o outro interveio, indagando: “Você é libanês ou palestino?” A resposta veio rápida: “Libanês”. O homem que fizera a pergunta o olhou de alto a baixo. “Sorte sua, garoto”, comentou. “Se fosse palestino, nós o mataríamos agora, a facadas.”
Depois disso, os dois se afastaram. Munir esperou que o ruído dos passos sumisse e se dirigiu a outra casa. Vazia. A outra. Ninguém. De casa em casa, desviando dos corpos, suportando a dor e o desespero, ele conseguiu chegar ao lado oposto do campo. Ali, finalmente, encontrou alguns palestinos, que o levaram ao hospital Gaza.
No outro extremo de Sabra e Chatila, em Bir Hassan, Wada al-Sabeq estava em casa com a família, sem saber do massacre, quando alguns vizinhos avisaram que soldados israelenses estavam lá fora para verificar os cartões de identificação dos moradores.
“Então descemos até a estrada e vimos soldados israelenses e falangistas. Eles nos separaram: os homens foram para um lado, as mulheres para outro”, Wada relembraria anos depois, num tribunal belga.
Os soldados mandaram que as mulheres seguissem para o Camille Chamoun Sports Stadium, conhecido como estádio Cite Sportif, a algumas centenas de metros dali. Os homens foram obrigados a permanecer onde estavam. Entre eles, Mohamed, 19 anos, e Ali, 16, filhos de Wada, além de um de seus irmãos, também chamado Mohamed.
“Fomos para o estádio, seguindo as ordens dos soldados israelenses”, ela disse. “Nunca mais vi meus filhos, nem meu irmão.”
A tarde de sexta-feira chegava ao fim. De seu esconderijo no manicômio, Nabil viu os faróis dos aviões israelenses se aproximando, ouviu tiros e explosões, mas dessa vez um ruído diferente também chegou a seus ouvidos: “Eram os buldôzeres, destruindo as casas e encobrindo os corpos.”
No hospital, Ellen ouvia os mesmos sons enquanto ia de uma cama a outra, de um quarto a outro. Muitos feridos de Sabra e Chatila eram levados ou conseguiam chegar sozinhos ao Gaza. Entre eles, um menino de 12 anos, em estado de choque. Tinha um ferimento grave na perna, outro no braço e um buraco na mão, onde antes havia um dedo. Os médicos e Ellen se concentraram em tratar a perna, para evitar que fosse amputada.
Mais tarde, naquela mesma noite, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha conseguiu permissão para levar algumas crianças feridas até um hospital fora dos campos. O menino de 12 anos foi um dos escolhidos, dada a gravidade do caso. Mais uma vez a sorte estava do lado de Munir Ahmed.

Sábado, 18 de setembro de 1982
Às oito da manhã, depois de 38 horas de ataque contínuo, os bombardeios e as rajadas diminuíram. Ellen e seus colegas do Gaza foram capturados pelos falangistas e levados de um canto a outro de Sabra e Chatila.
“Obrigaram-nos a marchar pela rua principal, entre os corpos dos mortos e de centenas de moradores vigiados por homens armados”, diria Ellen à Comissão Kahane. “Uma mulher tentou entregar seu bebê a um dos médicos, mas os milicianos impediram. Buldôzeres demoliam casas, e ao menos um deles trazia uma inscrição em hebraico. À medida que caminhávamos, nossos captores nos chamavam de ‘sujos’, ‘comunistas’, ‘socialistas’, ‘não cristãos’.”
Os falangistas chegaram a colocar médicos e enfermeiros num paredão e apontar-lhes as armas, mas desistiram de matá-los e os entregaram aos soldados israelenses – que, depois de outro longo vaivém, finalmente os libertaram. Ellen foi à embaixada dos EUA em Beirute, para denunciar o caso, mas pediram-lhe que voltasse no dia seguinte. Ela voltou, e fez um relato detalhado de tudo que vira e vivera.
Em Sabra, os falangistas levaram os sobreviventes até a entrada do campo, onde haviam feito um enorme buraco no solo. Mandaram que os homens entrassem nele e em seguida mataram um palestino na frente de todos, a sangue frio, provocando gritos nas mulheres e desespero nas crianças. Então, pelos alto-falantes, um soldado israelense ordenou: “Deem-nos os homens!”.
Milicianos libaneses e soldados israelenses obrigaram todos a marchar, mulheres e crianças à frente, homens atrás, até o Cite Sportif. Sana Sersawi, grávida de três meses, olhava para trás o tempo todo, para ver o marido, Hasan, e o cunhado, Faraj. Deixou de vê-los quando, no estádio, mulheres e crianças foram colocadas num enorme aposento de concreto e os homens, levados a outro local. “Eram 11 da manhã”, lembra Sana. “Uma hora depois, os soldados israelenses voltaram, ordenando que fôssemos para casa. Mas nenhuma de nós obedeceu. Ficamos lá fora, esperando nossos homens.”
De vez em quando um palestino era liberado e lhes pedia paciência, porque havia centenas de homens lá dentro e todos seriam interrogados. Sana não se importava de esperar quanto fosse preciso debaixo do sol escaldante, com o barulho infernal da movimentação de jipes, tanques, caminhões e um buldôzer, todos do exército de Israel. Só voltaria para casa com Hasan e o cunhado.
Ela notou que os caminhões, com a carroceria coberta por encerados, saíam do estádio a todo momento e tomavam direção desconhecida. Tentou encontrar uma fresta para ver o que havia dentro deles. Em vão.
Às quatro da tarde, um soldado israelense dirigiu-se às mulheres para avisar que não havia mais ninguém no Cite. Elas, no entanto, permaneceram onde estavam. Anoiteceu, o pessoal do exército deixou o estádio e as mulheres resolveram entrar. “Não havia ninguém ali”, Sana contaria ao tribunal belga. “Eu estava casada havia três anos. Nunca mais vi meu marido, nem meu cunhado.”
No meio da manhã, o jornalista inglês Robert Fisk conseguiu entrar no Cite Sportif porque os soldados, ao verem-no bem-vestido, pensaram que se tratasse de um agente do Shin Bet, o serviço de inteligência que atua dentro de Israel. Ele conta que viu “centenas de prisioneiros palestinos e libaneses, provavelmente mais de mil deles, no escuro, acocorados no chão poeirento, em silêncio, com medo, observados por soldados do exército israelense, pelo pessoal do Shin Bet e por homens que deviam ser colaboradores libaneses. De tempos em tempos alguns eram colocados em jipes e caminhões do exército de Israel ou em veículos dos falangistas e levados dali para, diziam os oficiais, ser interrogados”.
Fisk lamenta até hoje o que considera sua “ingenuidade” à época. Não lhe passou pela cabeça o fato de que aqueles homens eram interrogados e em seguida executados. Entre eles, Hasan, o marido de Sana.
No começo da noite, Nabil encontrou um vizinho, que também sobrevivera à tragédia. Soube então que Munir estava ferido e que fora levado a um hospital de Beirute. Começaria ali uma longa procura.

Domingo, 19 de setembro de 1982
Rumores de que agentes da inteligência israelense e falangistas circulavam por Sabra e Chatila, prendendo os jovens, levaram Nabil e o vizinho a procurar proteção na Cruz Vermelha, onde também se encontravam centenas de sobreviventes. Ambos já tinham tentado localizar Munir, sem sucesso. A certa altura, soldados do exército de Israel quiseram entrar no abrigo, mas os funcionários da Cruz Vermelha impediram.
Quando a situação amainou, Nabil tentou encontrar o irmão e entrar no campo. Os soldados israelenses frustraram suas tentativas. Mais tarde, em Sabra e Chatila, eles foram substituídos por homens do exército libanês, que não deixavam ninguém se aproximar dos corpos porque os falangistas haviam colocado explosivos embaixo deles. Quem os movesse seria morto.
Retirados os explosivos, Nabil conseguiu entrar. Viu corpos por todo canto, de amigos, conhecidos. Correu à garagem para onde sua família fora levada e viu o prédio em destroços. Nem assim perdeu a esperança de encontrar vivos os parentes – ou ao menos de identificar seus corpos, pranteá-los e enterrá-los como manda a tradição muçulmana.
Dirigiu-se à área que a Cruz Vermelha destinara aos mais de 200 cadáveres que aguardavam reconhecimento. Viu ossos e partes de corpos enfileirados, um cenário de terror. Algumas pessoas identificavam os parentes apenas pelas roupas ou pelos sapatos.
Foram dois dias de buscas, em que Nabil vasculhou as ruas examinando cada mão, cada cabeça, cada tufo de cabelo jogados aqui e ali. Nem sinal das irmãs Iman, 6 anos, Fadia, 8, Aida, 15, nem dos irmãos Mufid, 13 anos e Mouin, 11. Nem da mãe, Zehra, nem dos 11 membros da família do tio Abu Zuheir.
E então os corpos e as partes dos corpos foram enterrados numa vala comum, por causa do cheiro forte e do risco de doenças. Nabil jamais soube se sua família estava entre eles. Mas ao menos encontrou Munir e acompanhou seu tratamento.
No hospital, costumava ter longas conversas com a enfermeira do irmão, uma judia estadunidense chamada Ellen Siegel. Com a ajuda dela, ambos foram recomeçar a vida longe das lembranças dolorosas, das perdas: imigraram para os Estados Unidos.
Ellen volta ao Líbano todo ano, em setembro, para homenagear os mártires do massacre e para compartilhar carinho e solidariedade com os sobreviventes de Sabra e Chatila. A enfermeira judia tornou-se referência na defesa dos direitos dos refugiados palestinos. E é grande amiga de Nabil e Munir Ahmed.
O sofrimento do “outro lado” – o dos soldados israelenses – foi registrado no formato de cinema de animação. O diretor Ari Folman, que estava no Líbano durante o massacre mas não participou dele diretamente, reuniu sua própria vivência e a de seus companheiros de armas e transformou-as num documentário, Valsa com Bashir. O filme está disponível na internet.

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