O racismo deu certo no Brasil?


ARTIGO: O racismo deu certo no Brasil?


Em artigo publicado nesta semana na imprensa, a atriz e defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres, Kenia Maria, lembra como a literatura e outras produções culturais povoam o imaginário da sociedade brasileira com estereótipos negativos sobre a população negra. A artista alerta que ‘o racismo se aprende’ e que ‘ninguém nasce odiando ninguém’.
Kenia Maria, defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres. Foto: ONU Mulheres
Kenia Maria, defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres. Foto: ONU Mulheres
Por Kenia Maria, defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres*
Feche os olhos e imagine uma rainha, um anjo, uma boneca e uma babá. Quais dessas personagens são negras? A babá, na maioria das vezes, toma o imaginário das pessoas que participam dessa dinâmica em minhas palestras pelo Brasil. Por que será?
Uma literatura genuinamente brasileira escrita por Monteiro Lobato eternizou a imagem da mulher negra na cozinha, que ama servir e cuidar dos filhos dos outros, enquanto é insultada pela única criança que poderia ser seu filho, o Saci. Que, aliás, também é um menino negro mutilado.
Seria apropriação cultural Dona Benta registrar todos os livros de história e receitas em seu nome? Dona Benta cozinhava?
Devemos observar que as esculturas, músicas, pinturas, literatura, cinema e publicidade colaboraram para construção do nosso imaginário.
Certa vez, no aeroporto, uma mulher branca, do sul do país, conversava comigo sobre sua “mãe preta”. Ela me dizia, emocionada, que sua “mãe preta”, que na verdade era sua babá e apenas três anos mais velha que ela, nunca tinha sido tocada por um homem e que era virgem.
Na sua conclusão de “filha branca”, a mãe preta tinha nascido para cuidar dela e dos irmãos. E que o sexo e casamento não lhe interessavam. Me disse tudo isso com a mão no peito e emocionada. Tia Nastácia não saía da minha cabeça. Parei para pensar, durante o voo indo a Salvador, por que aquela mulher não conseguia ver mulheres negras como humanas. Sim, humanas!
Sempre achei a arte fundamental para a educação e a formação de um povo e percebi que quase toda arte que o Brasil produziu foi racista e machista na maioria das vezes. E cheguei a essa conclusão depois de uma aula sobre Grécia Antiga na faculdade… A arte é, por si, educação.
Certa vez, um renomado carnavalesco tentou colocar em seu desfile esculturas que reproduziam a imagem de cadáveres de judeus assassinados, vítimas do nazismo, e aquilo foi um choque. As pessoas ficaram indignadas, a comunidade judaica (com toda a razão) achou aquilo inadmissível e a alegoria foi proibida e censurada.
Na época, eu me perguntei por que as alegorias de negros escravizados não chocavam da mesma forma. Afinal, estamos falando de um dos maiores crimes contra humanidade: a escravidão.
Posso, num mesmo dia, ver um desfile com esculturas de escravos e pessoas se divertindo sem parar para pensar que a escravidão foi uma das maiores crises de humanidade, enquanto nas ruas toca a marchinha “o seu cabelo não nega mulata…”. E Claudia, arrastada pelas ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, é esquecida.
As pessoas se chocam quando digo que o racismo aqui deu certo.
Ora, aqui quase 80% dos jovens que morrem na idade mais produtiva são negros! A morte desses homens condena as mulheres negras para o resto da vida. Eles são nossos filhos, pais, irmãos e maridos.
A violência contra a mulher aumenta. Onde os direitos humanos e o Estado não entram.
Glamurizar a favela é muito conveniente. Não existe charme nenhum em acordar às quatro da manhã, deixar seus filhos com outras pessoas, atravessar a cidade para um trabalho e cuidar de outras crianças que serão ensinadas a odiar negros, na maioria das vezes.
Sim, o racismo se aprende. Ninguém nasce odiando ninguém. O racismo no Brasil é um comportamento. Portanto, eu estou sendo ácida sim.
Não quero falar de amor. Não agora. Agora, quero falar de justiça e direitos humanos.
*Artigo publicado originalmente no Huff Post Brasil em 25 de julho de 2017.

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